segunda-feira, 2 de novembro de 2009

“ Não há forma mais bonita de brincar do que com a água”



Entrevista de Mariana Catarino a José Festas

Universidade do Porto, Faculdade de Letras,

Ciências da Comunicação: Jornalismo, Assessoria e Multimédia

Os “Homens do Mar” conhecem-no como Mestre Festas... Pescador de gema, luta actualmente pelos direitos e pela segurança de todos aqueles que dedicam a sua vida ao mar. José Festas, é uma personagem emblemática no lugar das Caxinas. As suas palavras, conjuntamente com o seu sotaque característico das Caxinas recordam todos os momentos felizes e infelizes que passou sendo e honrando a sua profissão. Apaixonado pela água desde pequeno, considera que todos os riscos em alto mar não são suficientes para desistir de uma profissão, de um amor.

A vida de pescador foi substituída pela defesa de uma causa: a segurança em alto mar. A saudade vai iluminando a sua estrada do passado, mas um dia vai voltar a recordar a sua posição de “Mestre”.

A comunidade piscatória das Caxinas é conhecida pela sua união. Como é fazer parte desta comunidade?

A comunidade das Caxinas é composta maioritariamente por pescadores. Estabelecemos uma grande relação desde pequenos pois nascemos todos na borda da água, e temos em comum o amor pelo mar.

No entanto, considero que o lugar de Caxinas é mais unida que as outras por ser cá onde perdemos mais vidas no mar. É nestas ocasiões em que todos os caxineiros se juntam para chorar a morte de um irmão da terra. As igrejas enchem-se, não só de conhecidos da vítima, mas de colegas de profissão que são solidários.

Lembra-se de algum desastre que tenha mobilizado toda a comunidade das Caxinas?

Sim, infelizmente lembro-me de vários. Uma dessas experiências decorreu no ano passado quando aconteceu um desastre em Espanha e cinco pescadores faleceram. Infelizmente, um deles era das Caxinas, dois eram da Figueira da Foz e os restantes de Matosinhos. A minha comunidade juntou-se e fomos todos ao funeral do nosso pescador. Posso afirmar com toda a certeza que os caxineiros que estavam presentes no enterro superavam em muito os pescadores da Figueira e de Matosinhos juntos.

Este é o espírito de inter-ajuda das Caxinas. As outras comunidades piscatórias perderam uma pessoa da terra, nós perdemos um irmão de sangue.

É originário de uma família de pescadores. Como foi crescer tendo uma relação tão próxima com o mar?

Nasci à borda da água. Desde pequenino que convivo com a àgua, a praia era a minha primeira casa.

Com que idade começou a ir para o mar?

Tinha cerca de oito anos quando comecei a acompanhar o meu pai no mar. Se fosse pela minha vontade teria ido muito antes disso, mas os meus pais tinham noção dos perigos que eu podia correr.

Enquanto não estava autorizado para ir para o mar, ia brincando na chalandra (pequeno barco a remos que servia para fazer o transporte de terra para o barco e do barco para terra) dos meus pais. Na altura não havia nenhum cais em Vila do Conde e o barco tinha que ficar longe da praia. Assim, quando o meu pai vinha do mar deixava a chalandra na praia e eu e o meu irmão mais novo ficávamos lá a brincar.

A sua paixão pelas actividades piscatórias começou, então, desde cedo?

Gostava tanto do mar que, por vezes, nem dormia para ir à escola e ao mar. Há dias estive com a minha professora do ensino primário, a esposa do Presidente da Câmara de Vila do Conde, e ela recordou que adormeci várias vezes nas suas aulas. Mal chegava da escola, ia logo para a praia para ir para o mar com o meu pai e os meus irmãos mais velhos. Depois de passar a noite em alto mar, chegava a terra por volta das sete e meia da manhã. Como as aulas começavam às oito e meia da manhã, só tinha tempo de chegar a casa, comer qualquer coisa e pegar na mochila da escola. O cheiro a salitra ia entranhado nas minhas roupas, mas eu gostava. Afinal, era o mar que estava junto a mim.

Ia sempre para o mar ou era proibido pelos seus pais?

Claro que não ia sempre que queria. O meu pai muitas vezes não me levava para o mar porque sabia que era muito cansativo para mim. Mas era o gosto que eu tinha, não dava para o contrariar. Foram várias as vezes em que eu e alguns colegas nos escondemos no porão do barco para passar a noite no mar.

Considera que a sua infância foi diferente das outras crianças?

Não digo que foi diferente, mas igual a todos os meus colegas, apenas tínhamos formas diferentes de viver. Os meus colegas no final das aulas iam para casa brincar, eu e os meus colegas das Caxinas íamos para o mar.

Não sinto qualquer arrependimento da forma como vivi os meus tempos de pequenino. Para mim, não há forma mais bonita de brincar do que com a água.

Depois da escola juntava-me aos meus colegas e íamos directos à praia para nadar um pouco no mar. Passado um tempo, quando a fome começava a apertar íamos até um campo e tirávamos cenouras ou fruta. Como a cenoura é muito amarga com a casca, raspávamo-las no muro e depois comíamos.

Havia falta de comida nessa época?

Havia sim, mas não era em todos os lares. A minha família nunca viveu com dificuldades, mas algumas famílias eram pobres e não tinham o que comer. Lembro-me perfeitamente de a minha avó estar a fazer pão e eu ir lá à masseira buscar pão para dar aos meus amigos.

Sente saudades desse tempo?

Sim, muita saudade. Era um tempo de muita felicidade. Há cerca de dois meses fui andar um pouco a pé e passei por um campo com cenouras. Actualmente nem sou muito apreciador de cenouras, mas para relembrar os velhos tempos fui ao campo e roubei uma. Tal como fazia em criança, raspei-a no muro e dei uma dentada. Parecia que tinha voltado àquele tempo.

Como eram vistos pelos restantes colegas de escola que não pertenciam à comunidade piscatória?

Na altura nós chamava-mo-lhes “os meninos dos papás”. Eles não gostavam muito de nós porque tínhamos uma vida diferente: com mais riscos, mas ao mesmo tempo mais divertida. Os próprios pais também tinham um certo complexo e pensavam que nós éramos muito mal comportados e maus alunos. A verdade é que muitos dos meus colegas das Caxinas são advogados e engenheiros. Eu não quis estudar mais que a quarta classe.

Pode então afirmar que há um estereótipo formado acerca do que é ser pescador?

Sim, muita gente pensa que o pescador é aquela pessoa sem formação, mal educar e que a única coisa que sabe fazer é pescar. Isso não é verdade. Ser pescador é muito mais do que lançar uma rede para a água e puxá-la quando esta está repleta de peixes. É um trabalho muito duro e cansativo, mas quem o faz, fá-lo por amor. Apesar de não termos tantos estudos, sabemos ler, escrever e defender uma causa. Mas será que um doutor sabe ser pescador?

Nota grandes diferenças relativamente à pesca actual e o que era feito antigamente?

Sim. A tradição foi um dos factores que mudou mais relativamente ao passado. Apesar dos barcos estarem agora melhor equipados e possuírem vários mecanismos de segurança, considero que a tradição de ser pescador já não é a mesma.

Porque afirma isso?

Antigamente, para se ser considerado um pescador tinha que se cumprir uma série de regras.

Quando ia para o mar, um pescador tinha que levar sempre umas botas, não podia ser uns sapatos ou chinelos, tinha que calçar umas botas. Segundo a tradição, o pescador trabalhava de botas de cano alto, usando um barrete (também conhecido como catapiço) e umas meias de lã brancas e tinha que transportar sempre um baú. Se não fosse assim para o mar, as pessoas diziam que eu não era um verdadeiro pescador.

Pescadores das Caxinas, no tempo em que a tradição de utilizar um barrete ainda prevalecia.


Essa tradição verificava-se em todo o território português ou era só na comunidade das Caxinas?

Era em quase todo o território português, porém era mais rígida aqui nas Caxinas. Em Vila do Conde, todos os pescadores tinham que calçar botas, meias brancas, levar o barrete e o baú, senão não eram respeitados como pescadores. Porém, em Matosinhos essa tradição não estava tão cultivada. Por variadas vezes ouvi pescadores de Matosinhos a rirem-se de mim e de outros pescadores das Caxinas por estarmos com botas e não com sapatos, pois para eles era muito comum usarem sapatos por ser mais prático.

Nas Caxinas é conhecido como “Mestre Festas”. A que se deve essa designação?

Um Mestre de Pesca é o proprietário de um barco. É quem organiza e dirige a sua tripulação. É um cargo de grande responsabilidade, pois é o Mestre que decide o que pescar e onde. É importante que o Mestre de Pesca saiba escolher os sítios para pescar pois o mar não nos paga, o que conseguimos dele faz-nos ganhar dinheiro e é o Mestre que paga à sua tripulação.

O seu bisavô, o seu avô, o seu pai eram pescadores e agora o seu filho também enveredou por essa área. É por vocação ou esse facto deve-se à influência do meio envolvente?

Nunca ninguém nos obrigou a ser pescadores e a gostar do mar, mas é natural. Nascemos com o mar e desde pequenos criamos dentro de nós aquele bichinho que nos diz que temos que ser pescadores. Não se trata de uma obrigação que um filho de pescador tem, mas a convivência tão próxima com o mar cultiva uma paixão pelo meio.

Com todos os perigos a que um “Homem do Mar” está sujeito, nunca se arrependeu da sua profissão?

Não, e nunca me hei de arrepender. Amo a minha profissão e se assim não o fosse, não estaria tão orgulhoso como estou do meu filho.

Já apanhou grandes sustos enquanto exercia a sua profissão?

Sim. Apesar de nunca ter naufragado, já corri sérios riscos no mar. Foram esses riscos que me levaram a constituir a Associação Pró Maior Segurança dos Homens do Mar (APMSHM).

Como é ver um amigo a perder a vida na profissão que tanto ama?

Uma das minhas maiores tristezas na vida foi perder um homem no mar. Foi o pior dia da minha vida, saí com onze homens e cheguei a terra com dez.

O que aconteceu realmente nesse dia?

Foi há 23 anos atrás. Eu estava perto de Peniche, quando uma grande tempestade começou e o mar ficou muito perigoso. Naveguei até ao porto de Peniche, mas a barra estava fechada porque quem entrasse poderia naufragar. A única solução era ir até ao abrigo das Berlengas. Até lá demorava cerca de 35 minutos, mas nesse dia demorei oito horas porque o vento e a ondulação do mar empurravam o barco para trás. Foi nesse percurso que perdi um homem. Ele caiu ao mar, mas nós não o conseguimos salvar. Acabei por ter que ficar nas Berlengas durante dois dias, que foi quando a tempestade passou.

A Capela da Nossa Senhora da Guia foi um porto de abrigo para muitas esposas de pescadores que esperavam ansiosamente o seu regresso. Tem conhecimento de histórias de caxineiras que pediram à padroeira dos pescadores para que ouvisse as suas preces?

Esse facto não é do meu tempo de pescador, mas de criança. Lembro-me de ser pequeno e ver as senhoras a ir lá. A minha mãe não fazia muito isso, mas é curioso que o meu refúgio é a Capela da Nossa Senhora da Guia. Muitas vezes estou aborrecido ou então preciso de pensar e sento-me lá e olho para o mar. não sei muito bem porquê, mas gosto daquele lugar.

A comunidade das Caxinas é conhecida por ser muito religiosa, sobretudo no que toca ao Nosso Senhor dos Navegantes. Esse afecto pela religião está directamente relacionado com o perigo a que os caxineiros estão sujeitos?

Não, a comunidade das Caxinas sempre foi muito religiosa. Conheço várias comunidades piscatórias e nenhumas delas são tão religiosas. Nós, pescadores, temos fé e isso não acontece por ser pescador. Uma das pessoas que tinha mais fé nas Caxinas foi quem ajudou a pagar a Igreja de Nosso Senhor dos Navegantes e não era pescador. Fê-lo por fé.

O trágico naufrágio na Nazaré da embarcação “Luz do Sameiro” levou-o a tomar uma posição relativamente à segurança dos pescadores. Como foi criar a Associação Pró Maior Segurança dos Homens do Mar?

Sempre fiz parte de associações, mas nunca tinha presidido nem fundado nenhuma delas. Na altura do naufrágio eu era o representante dos pescadores e, devido a um acumular de situações trágicas no mar decidi tomar uma medida, conjuntamente com alguns Mestres de profissão. Nunca tinha pensado que poderia criar uma associação, mas estou contente com o resultado porque todos os nossos movimentos são pacíficos.

Entrada da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar


Uma outra razão para ter criado a APMSHM foi o facto de ter perdido um dos meus tripulantes no mar. Foi uma situação trágica e, por ter vivido tudo frente-a-frente, fez-me pensar que algo poderia ser feito para evitar mortes nesta profissão.

Considera que o seu trabalho na Associação já deu frutos?

Com toda a certeza que sim. Quando a Associação foi formada, com cerca de vinte sócios, ainda parecia que estávamos muito no início. Actualmente, a APMSHM é a maior de Portugal no sector das pescas. Uma grande vantagem da Associação Pró-Maior é o facto de ser especializada em meios de salvamento. Há relativamente pouco tempo estive em Espanha e lá falava-se muito da associação porque defende apenas o seu objectivo principal.

Uma marca conclusiva de sucesso da associação foi a aprovação de um projecto no valor de 8 milhões de Euros e os três simulacros que já fizemos nos anos passados.

Foi a criação da APMSHM que o levou a suspender a sua profissão?

Sim, sem dúvida que foi isso. Antes de criar a Associação já não precisava de ir todos os dias ao mar porque o meu filho já era Mestre de embarcação. Ainda estou na casa dos quarenta, como tal poderia ainda viver muitos mais anos desempenhando a minha profissão, mas já não dava.

Sinto falta de ir, acho que me faria bem ir uma vez por outra. Mas é-me impossível. A Associação leva-me a despender de muito tempo.

Quem o conhece define-o como sendo uma pessoa dinâmica e capaz de abdicar da sua vida pessoal em favor de uma causa em que acredita. A que se deve todo esse esforço?

Fico muito lisonjeado por saber isso, mas a verdade é que quando acredito em algo defendo a minha posição até ao fim. A minha vida pessoal e familiar sofreu imenso com isso. Vivo com os meus telemóveis a tocar a toda a hora. Chego por volta das 9 horas da manhã à Associação e nunca saio de cá antes das 21 horas. Mas, no meio de toda esta azáfama, tenho que agradecer à minha mulher, aos meus filhos e à minha família por me compreenderem e me apoiarem.

Sente saudade de pescar e comandar o seu barco?

Sim, tenho uma enorme saudade de ir ao mar. Eu vivo em Retorta, uma freguesia do interior de Vila do Conde, e saio todos os dias de casa para vir para a APMSHM. Se não vier à Associação tenho que ir até à praia ver, ouvir, tocar e sentir o cheiro do mar. Agora o Mestre do meu barco é o meu filho e eu já não tenho disponibilidade para ir para o mar. Mas gostava de ir um dia destes.

Como defensor dos direitos dos pescadores, quais considera serem as maiores ameaças à pesca portuguesa?

A vida de pescador e a própria profissão tem vivido alguns problemas devido à falta de mão de obra disponível. Aquele bichinho que nasce connosco e nos leva a ter uma enorme paixão pelo mar já não é tão frequente. As pessoas, apesar de até gostarem da vida de pescador, acabam por se acobardar com os perigos a que estão sujeitos. Assim, penso que a principal ameaça à pesca portuguesa é a reduzida mão de obra disponível que pode conduzir a uma diminuição de pescado do nosso país.



1 comentário:

bárbara disse...

Ai ai ai!Pescadores das caxinas??? Estes senhores na imagem são poveiros! Então não se vê logo pela matricula do barco e pelas tradicionais camisolas poveiras que têm vestidas?

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